O romance e o livro nos lares da imaginação e da pedagogia
– ou –
por falar em adivinhação
por Ethon Fonseca
O fabulador personifica as suas idéias dando forma e materializando às imagens de forças contrastantes, ao encenar evocativamente, correlações dinâmicas de suas energias afinadas com reflexões puxadas dos sinais dos tempos. As personas, ou máscaras, são as formas supostamente humanas pelas quais nos educávamos a perceber algumas das tais energias. E por mais que o antropomorfismo possa ser tomado como extemporâneo, as personificações poéticas são matéria das mais sérias com a qual convive o fabulador às voltas com os achados e perdidos do nosso imaginário. À medida em que encontram-se registros e bons modos de leitura nos rumos da almejada vida refletida, cenários, desenhos de estruturas, personalidades, símbolos, com horrores de humor e inteligências se entrelaçam num encordoamento literário freqüentemente identificado com o romance e mais especificamente com o livro. A corda narrativa atravessa intertextualmente peças de entretenimento, montagens culturais, geradoras de imagens, discursos mais literais, trabalhos artísticos e relações cotidianas de tal forma que – pensando nos sentidos do “se contar”, com a razão, num entendimento de ponderação crítica, diabolicamente criativo ou prudentemente contemplativo – não parece exagero dizer que somos não apenas atravessados por, mas constituídos de, narratividade: por narrativas que dão sentidos e que nos habitam, que povoamos com as preciosas fantasmagorias do nosso imaginário, que carregamos e trocamos, distribuindo e elaborando, compondo e configurando, tentando devolver ao lugar da arte a inquietação que nos contagia.
Mas que locus seria este? O do livro, até hoje? Sócrates já questionava a primazia deste grande mestre incapaz de responder às suas perguntas. No entanto o livro, reinventado pelo cristianismo de São Jerônimo, configura dos nossos mitos formativos mais caros, sim, cultuados e celebrados com datas especiais e eventos talvez ainda mais especiais. O objeto, que Caetano qualificou brilhantemente de transcendente, transborda a informação rasteira ou pedestre tocando às compreensões e às imagens mentais de interpretação ou mesmo oração, abrangendo o que se mostra muito bonito ou até mesmo de utilidades nos caminhos da busca pela realização dos maiores objetivos neste mundão de Deus sem porteiras: que podem ser momentos de fases da vida, diálogos, encontros, composições, registros históricos, ou o que mais for portal, artigo ou mesmo comercial, ou passagem que se some e incorpore às veredas desta consciência, que não me pertence mas é tudo o que possuo e posso almejar.
Agora a moda é estudar culturalmente as relações que se constituem ao redor das práticas de leitura, que lhe conferem sentido e importância, também ao longo da História, talvez até para lidar com as mudanças da contemporaneidade. Só quero ressaltar, ao empregar a expressão “passagens” tão utilizada em filosofia para falar de urbanidade em transformação, que se encurtamos os tempos de viagens no espaço, as relações leitoras configuram o exato inverso, em que dilatamos, ao longo de toda a vida, o tempo de apreciação das proposições e dos argumentos desenvolvidos nas obras clássicas da literatura universal, bem como nos projetos de educação operam-se, com mensagens tênues e sofisticadas, ao longo dos processos históricos, para a configuração de relações “edificantes”, e conseqüentemente consistentes em escalas transcendentes destes nossos tempos que parecem sempre estar “urgindo”.
Assim posso passar à segunda pista nesta busca, pelos bons modos em que temos, a essas alturas de vida, de confiar, por um lugar para os desenvolvimentos autorais do próprio imaginário, que é coletivo e mitológico: a ação educativa. Ela é necessariamente qualificada em termos de interesses ou objetivos e de articulações, ao passo que poéticas literárias, como as do cancioneiro, apontam caminhos de processos pensantes não raro ainda mais personalizados e rebuscados do que se costumaria acusar, envolvendo artes eventualmente mais próximas às artes adivinhatórias. E houve época em que toda a cidade passava por um mesmo local para os exercícios da arte adivinhatória, naquele templo em cuja entrada se lia a inscrição “Conhece-te a ti mesmo”, o famoso templo de Delfos. Hoje essa dinâmica é inviável, até porque ninguém ficou nessas saudades, mas a noção de adivinhação está tão impregnada em idéias de sabedoria até hoje em vigor que bem pode servir para uma ou duas ilustrações a respeito do mistério artístico escrito. Como professor, por exemplo, sou obrigado a adivinhar no frentista do posto de gasolina o pai de alunado. Podemos considerar as relações econômicas, de classe, nas estruturas políticas, históricas, mas a complexidade da informação presencial é tamanha que veda maiores prescrições de ordem moral, tratando-se do que se pode considerar não apenas como um julgamento subjetivo ou “adivinhatório”, mas sem dúvida também especulativo e com potencialidades estéticas – de valoração da própria sensacionalidade que se costumava chamar de gosto ou de gostar. Assim o artista persegue intuições, no bojo de suas tão bem conhecidas relações de valoração dos pensamentos, lança proposições, elaborando os jogos de uma revelação e invenção do humano. Como artista é possível que ele também se veja moralmente obrigado a fazer algum tipo de arte adivinhatória, nem que seja a de vislumbrar nas personagens as viabilidades expressivas que ele trata de compor. O exemplo que eu dei pode não ser muito plausível, mas isso pouco importa, porque em compensação ele é bem real. Já as ilustrações literárias tampouco se comprometem com a propriedade convincente da plausibilidade, por operarem num registro de idéias tomadas como viáveis enquanto notas mentais de uma composição, registro de verossimilhança. Nesta jornada aos próprios mistérios talvez não possamos ajudar se não prestigiando os trabalhos, eventualmente incluindo razões bem suas de serem notabilizados. Mas talvez possamos ir ainda mais adiante, no educandário, e considerar as modernas tecnologias da escrituração e da comunicação enquanto inspiradoras de condições que demandem novos trabalhos dignos do nome de romance, novos jogos, enredos e até mesmo festejos.
Me proponho basicamente a levantar a questão. Não cometo a insanidade em tentar respondê-la. Nem digo que o livro tenha dias contados, ou que não se compita com outros veículos ao adotar esse ou aquele nosso modelo no desenvolvimento da própria linguagem. Só fico imaginando como “o poeta ativo e fecundo” (para aproveitar a expressão do Baudelaire das passagens entre a multidão e a solidão) lidaria hoje com suas personagens, e como povoam de fato seu cotidiano com suas expressões e impressões, seus ensaios e poderes, suas peças e máscaras.
Brinde à Cervantes, Shakespeare, Baudelaire, Guimarães Rosa, Alan Moore e Mário de Andrade
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua opinião é muito importante.