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domingo, 30 de janeiro de 2011

Dona Mimi não foi à escola

DONA MIMI NÃO FOI À ESCOLA
Ivone Bengochea
Dona Mimi acordou como de costume, no horário de sempre. Provavelmente, impulsionada pelo hábito de anos a fio contemplando o espetáculo do alvorecer. Acolhia o sol com os primeiros raios e, assim, como num ritual amoroso, curtia aquele abraço solar e o perfume inebriante que vinha do jardim florido que ela mesma semeou com desvelo, no transcurso dos anos. O calor do sol e o perfume das flores transmutavam-se em lenitivos para sua alma aflita, encorajando-a a enfrentar as agruras do cotidiano. Aqueles raios sol eram um pouco dos seus muitos amores que se perderam nos labirintos dos tempos mas que foram sublimados no afeto das crianças e dos jovens a quem se dedicou a ensinar por 30 anos. Os corações e as mentes de várias gerações foram tocados pelo condão mágico do amor que só ela experimentava e, talvez por desígnios dos deuses, especialmente da musa Clio, escolhera história como disciplina escolar. E, assim, desde o dia de sua formatura, reafirmou seu pacto com a Minemósine, a deusa da memória, para captar todos os instantes do mundo, às vezes espetacularmente belos, e
outras vezes tragicamente horrendos. Horror, como dizia o poeta Mario Quintana é uma palavra com os cabelos em pé.

Ela, que sempre se vangloriou de conviver harmoniosamente com o tempo, estava ali perplexa diante do registro de sua aposentadoria no diário oficial. Falou baixinho: são 30 anos de trabalho. E o que são 30 anos? Afinal, o tempo é como uma criança que joga as pedrinhas no rio da vida sem se preocupar em contá-las, fascinado pelos círculos que se desenhava, nos espelhos da água. Mas, Dona Mimi , professora de história, paradoxalmente, sentia-se atemporal apesar de que nos documentos fosse considerada longeva adentrada nos anos. Por isso, em cada alvorecer bebia o néctar das flores e se iluminava com os raios de sol e se fortalecia para uma nova jornada, sempre renovada, com suas múltiplas facetas. Facetas que as mulheres como ela dobram e desdobram como um orgami japonês para conciliar os inúmeros encargos que lhes são confiados. Persistente, Mimi foi sempre vaidosa a brigar com o espelho porque o que a atemorizava não era o peso do tempo mas como lidar com ele. Como se tem conhecimento nunca ninguém provou que Cronos, deus do tempo, portasse uma balança. Sabe-se sim que Cronos devorava os filhos para que não lhe arrebatassem o trono, até que um dia a sua esposa, Reia, enganando-o salvou um menino que veio a ser Zeus, o deus dos deuses no Olimpo. Mimi era apaixonada por Zeus porque do amor dele com deusa da Memória que nasceu as nove musas, entre elas Clio a protetora da história. Por sua vez, a memória, é a iconografia da lembrança, até mesmo daquilo que persistimos em esquecer, mas que urge lembrar, como os acontecimentos sombrios da crueldade humana, o doloroso calvário daqueles que perseguiram os ideais de justiça para o bem da humanidade.

Mnemósine, deusa da memória, segundo a Teogonia de Hesíodo, é associada á luz do dia e a beleza de Apolo, deus do sol, e se opõe à deusa do esquecimento, Lethe. As duas deusas têm seus direitos e áreas de atuação definidas, já que para os humanos lembrar e esquecer são escolhas e caminhos possíveis Tudo deságua no emaranhado de lembranças e esquecimento nas almas dos homens.

Aposentada, dona Mimi não foi à escola, mas também não se recolheu aos seus aposentos, apenas rememorou em cada detalhe o convívio com rosas de seu jardim que cultivou com o mesmo esmero que ajudou iluminar as gerações de alunos com a luz da milenar sabedoria, que não provem do saber pronto que adormece cristalizado na fria letra impressa, mas é essencialmente dinâmico no sentido grego da aletheia que se traduz por desvelar (tirar o véu), daquilo que se esconde sob as aparências, de perseguir a luz tênue que perpassa as fendas da caverna platônica, onde os homens ali viveram acorrentados sem conhecer a luz do sol.

No desdobrar-se o humano, demasiado humano como diria o filósofo Nietzsche, estão os seus inúmeros alunos: mulheres e homens famosos e anônimos, todos eles com seus tormentos inexprimíveis, seres diferentes que se aproximam e se distanciam e impelidos na procura de uma vida bem ou mal sucedida numa sinuosa que transcende o aqui e agora. Enfim, é a existência, um privilégio singularmente humano, uma compreensão da clareza que o ser humano não é um dado pronto e estável, mas um encargo, um risco de ganhar-se e perder-se. Para dona Mimi foram 30 anos de uma experiência de vida singular, identificada com o saber, com o apaixonado com o místico. Agora, é o tempo de sair dos aposentos para aproximar-se do rio dos sonhos, transcendendo e vasculhando as ruínas dos tempos e vislumbrar as utopias perdidas. E, principalmente reacender a chama do amor que nunca se apaga no coração de uma professora idealista como ela.

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